Imaginários,
Corporalidades e
Materialidades Anfíbias







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Harpie

Aida Estela Castro




HARPIE. Monstre vivant (...)
[Paris (Rue St. Jacques):Ednauis et Rapilly, between 1700 and 1799].
Etching, with watercolour. Wellcome Library no. 39924i.[https://wellcomecollection.org/works/efnwjrv2]
















(legenda transcrita)



HARPIE , Monstre vivant qui a été pris sur les bords du Lac de Fagua, ao Royaume de S.ta Fé Province du Chili, au Perou, dans l’Amérique Méridionale ou Espagnole & c.

Ce Monstre a environ 12 pieds de long ; sa face est semblable à celle d’un homme, la bouche très larges; il a deux cornes de Taureau, des oreilles d’ane et une longue criniere pareille à celle du Lion ;  il as deux mamelles comme celles d’une femme et des ailes de chauve-souris . Il n’a que deux pattes qui sont grosses et courtes, armeés chacune de 5 griffes de corne . Il a deux queues, l’une semblable a celle du serpent, qui parroit propre à saisir la proie, et l’autre terminée en darde , lui sert à la tuer . La partie inferieure de son corps est couverte d’écailles, et la partie superieure de poils . Il a été pris par une quantité d’hommes dans une piege qu’on tui avant tendu . Ces monstre carnivore sortoit la nuit de son lac pour dévore les cochons, les vaches, les Taureaux & c. Il fut conduit au Viceroi . Sa voracité est t’elle qu’il mange chaque jour un boeufe et 3 ou 4 cochons dont il parroit très friand . Le Viceroi a fait conduire ce monstre unique par étape dans les terres jusqu’au Golfe de Honduras, d’où on lá embarqué pour la Havanne , de lá aux Bermudes, aux Açores , enfin a Cadix pour être amené au Roi d’Espagne . On a apperçu la femmelle et les ordres sont donnés pour la prendre, s’il est possible afin de perpetuer la race en Europe .

A Paris, chez Esnauts et Rapilly, rue St. Jacques, à l’enseigne de La Ville de Coutances



(legenda traduzida PT)

HARPIE, Monstro vivo que foi capturado nas margens do Lago Fagua, ao Reino de S.ta Fé Província do Chile, no Peru, na América Meridional ou Espanhola & c.

Este monstro tem cerca de 12 pés de comprimento; a sua cara é semelhante à de um homem, a sua boca é muito grande; tem dois cornos de Touro, orelhas de burro e uma juba farta como a de um leão; tem duas mamas como as de uma mulher e asas de morcego. Tem apenas duas patas, que são grossas e curtas, cada uma armada com 5 garras em forma de chifre. Tem duas caudas, uma semelhante à de uma cobra, que parece ser adequada para agarrar a sua presa, e a outra que termina num ferrão, que utiliza para a matar. A parte inferior do seu corpo está coberta de escamas e a parte superior de pelos. Foi apanhado por vários homens numa armadilha que lhe tinham preparado. Este monstro carnívoro saía do seu lago à noite para devorar porcos, vacas, touros, etc. Foi levado ao Vice-Rei. Era tão voraz que todos os dias comia um boi e 3 ou 4 porcos, dos quais parecia gostar muito. O Vice-Rei mandou transportar este monstro único, por etapas, pelo interior até ao Golfo das Honduras, de onde foi embarcado para Havana, daí para as Bermudas, para os Açores e, finalmente, para Cádis, para ser levado ao Rei de Espanha. A fêmea foi avistada e foram dadas ordens para a levar, se possível, a fim de perpetuar a raça na Europa.

Em Paris, por Esnauts et Rapilly, rue St. Jacques, sob a insígnia de La Ville de Coutances.


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A Harpie, esta Harpie, é uma figura arquétipo para o nosso projeto, por justamente ser um ser de fronteira, um corpo-media que transmite estas travessias narradas e uma figura que indica construções artificiais e políticas corporizadas.

Harpie é artificial, composta por vários imaginários, espécies biológicas e géneros humanos. É também anfíbia, pois a sua figura clássica, apresentada como um híbrido de mulher e pássaro, sofreu nesta representação uma mutação. Nas pesquisas em marcha procuramos entender a materialidade desta mutação e o que a forçou e provocou.

A apresentação desta imagem e da legenda, enquanto chave para ativar e como matéria inicial de (de)Monstras [de.Mon], irá então se debruçar sobre aspetos teórico-visuais construtores de narrativas culturais e especulativas, assim como empenhar metodologias próximas do ensaio visual. Para estudar esta figura precisamos de adotar metodologias híbridas e transdisciplinares, já presentes nesta relação entre imagem e texto, mas também no próprio corpo descrito e na viagem narrada que une territórios distantes e transatlânticos.

O estudo desta Monstra dá então início à construção de uma arqueologia de corpos-media, objetivo que o projeto quer realizar. Os media são aqui entendidos como um processo amplo de mediações, que excede o funcional e o instrumental, incorporando antes as materialidades das coisas e das ligações, as produções, as manifestações e as performances.

Está a ser preparado um artigo por Aida Estela Castro e Ana Carolina Fiuza que revelará as pesquisas realizadas nos arquivos da Wellcome Collection em torno desta figura, sendo que já foi apresentada uma comunicação intitulada (de)MONSTRAS: especulações sobre um corpo-media transfronteiriço, no painel sobre cultura visual do congresso XIII SOPCOM, 24 janeiro de 2024, na Universidade do Minho.