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Espectros

Maria Mire



CINEMAS 6 (Casa da Imagem), Maria Mire, 2014


ESPECTRÓGRAFO, Maria Mire, 2023












No romance fantástico “A invenção de Morel” de Adolfo Bioy Casares, publicado em 1940, a narrativa acompanha o registo diarístico de um náufrago que dá à costa numa ilha após uma fuga a uma condenação perpétua. O isolamento e a solidão são ocupados por uma conquista da sua permanência num ambiente natural que lhe é hostil: o perigo da força e da imprevisibilidade das marés, as altas temperaturas, o alimento que é recolectado de raízes comestíveis, a improvisação de locais de abrigo, a densidade obscura da vegetação. Uma dimensão alegórica atravessa este náufrago que é separado do seu (nosso) mundo e que se reencontra aqui numa dimensão primitiva, a qual só é superada pelo conhecimento empírico sobre os fenómenos. Uma segunda natureza, que lhe é estranha e a partir da qual ele terá que lentamente emergir. Mais do que a dimensão animal da tentativa de sobrevivência, num local que lhe é desconhecido e agreste, é a dimensão humana da subjectivização que relança a ocupação dos seus dias, através das incursões às arquitecturas abandonadas — o edifício do museu, a capela alongada e a piscina — que são um lastro de uma presença anterior à sua. É na deambulação por esses espaços, agora ocupados por si, que surgem as aparições. Percepções claras da existência de outras presenças que se assemelham à sua imagem humana. 

Visitantes? Definitivamente intrusos, que descem a colina desta ilha banhada pela luz de dois sóis e de duas luas. Primeiro como alucinações, depois como presenças concretas que se vão impondo pela rotina dos dias. O medo é superado pela vontade de contacto, mas a figura sobre a qual o náufrago dedica a vigilância e a obsessão dos seus pensamentos, Faustine, é estranhamente intangível. Os seus olhos não vêem e o corpo não reage ao toque.

Os seus semelhantes são afinal dissemelhantes, uma relação entre seres de diferentes dimensões. Imagens holográficas de uma máquina que os capturou e que os reproduz ciclicamente. Mas também o sol, a lua, a vegetação, os animais, os espaços foram capturados, provocando porém uma inevitável dessincronia com o momento da sua transmissão. Pois, os oitos dias durante o Inverno em que tudo foi capturado, produz um desfasamento com o ciclo descrito no diário, que ocorre agora nos dias quentes do Verão.

A invenção de Morel, imaginada para dar realidade perpétua a uma fantasia sentimental, é assim uma máquina que grava e projecta pelo espaço, sem necessitar de embater em nenhuma superfície que se torne ecrã. E foi construída nesta ilha que se diz ter sido atacada pela peste e cuja força das marés produz a energia para manter os motores da máquina activos interruptamente. O assombro inicial sobre tal prodígio dá lugar a uma convivência quotidiana. Em que, à presença actual do náufrago, se justapõem com um ligeiro desacerto os espectros que preenchem a sua solidão. Mas isso não é suficiente, pois o desejo de confrontar Faustine, de ela conhecer a sua existência, só é hipoteticamente possível se a máquina também o capturar. Vencido pela vontade de perpetuar uma existência que é fixada numa imagem, a mortalidade chega. Apodera-se lentamente das entidades vivas que foram captadas. A carne do corpo apodrece pálida à luz da exposição da invenção de Morel. As duas imagens, a de Faustine e do náufrago, coexistem agora, mas continuam a não se conseguir tocar. Seria necessário para isso que convergissem num mesmo tempo, e não que este fosse projectado dessincronizado como réplicas cíclicas de dois momentos distintos, capturados no mesmo espaço. É essa a sua última súplica: a invenção de uma máquina capaz de reunir as presenças desconjuntadas.

Na estranheza fantástica em que mergulhamos neste conto, encontramos a imagem não como uma esfera marginal, mas como a possibilidade de ela própria reter uma (outra) vida, um encontro que é aqui marcado pela dimensão limite da desaparição. Mas mais do que esse limite, que está inexoravelmente presente em todas as coisas, interessa antes pensar no modo como a imagem cintila, como ela emana uma presença que se fabrica por completo, retendo e reproduzindo a sua força de cada vez que é olhada. Como um corpo estacionário que é movido pelo efeito desestabilizador que provoca nos outros corpos. Uma dimensão técnica de uma presença viva que dá conta da autonomia subjectiva dos espectros.




Nota: Este texto, agora revisto, foi retirado das conclusões do trabalho de investigação: Maria Mire,"FANTASMAGORIAS - A imagem em movimento no campo das artes plásticas". Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, 2016: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/82593.