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Cyborg

Ana Carolina Fiuza








1.
Em seu Manifesto Cyborg”, de 1985, Donna Haraway articula novas teorias da subjetividade, tecnologicamente mediada, ao revisar um tropo narrativo emergente da cibernética: o cyborg, híbrido de máquina e organismo, criatura de realidade social e de ficção, que desafia as fronteiras entre corpos de diferentes naturezas. Algumas distinções tradicionais são postas em cheque: as que separavam animais, humanos e máquinas. A primeira delas, entre humanos e outras espécies animais, está ligada ao advento das teorias biológicas e evolutivas, sobretudo as darwinistas. A segunda relaciona-se às biotecnologias, que permitem a produção da vida artificial e o controle do humano sobre sua própria natureza animal. A terceira se deve ao trabalho da cibernética em si: a criação de máquinas que se movem e têm a forma humana tornou ainda mais ambígua a diferença entre os mundos natural e artificial.
Para além de uma metáfora, o corpo cyborg torna-se uma construção de consciência que rejeita os modelos binários da relação humano-máquina —  e através do qual é possível explorar a influência das tecnologias avançadas na construção das subjetividades contemporâneas. Um corpo híbrido, mistura de máquina e organismo, que permite o encontro entre naturezas aparentemente opostas. Como também demonstra Haraway em seu Manifesto, na relação humano-máquina não está claro quem produz ou quem é produzido. Mas uma coisa é inegável: as biotecnologias estão reescrevendo nossos corpos e, logo, subjetividades – na ficção e na realidade. O corpo humano, biológico, passa a ocupar a centralidade das pesquisas, pensamentos e discursos técnico-científicos, se tornando a própria interface na qual estes tomam forma. Abre-se o caminho para a “virada pós-humana”, nos termos de Rosi Braidotti, em que uma profusão de enunciados buscam redefinir a noção de “humano” a partir de suas mediações tecnológicas, num mundo globalmente conectado.


2.
As representações do sujeito localizado em um corpo ativo e orgânico, em contraposição à máquina, passiva e inorgânica — a artificialidade do automaton em contraposição à organicidade e à autonomia humanas — há muito se complexificaram. Como sinalizou Bruno Latour, o processo moderno de “purificação”, que culmina na separação entre humano e não-humano, entre natureza e cultura, demonstrou-se ilusório: uma zona híbrida sempre esteve colocada. Mesmo ao buscar definir-se em função daquilo que não é, o que Haraway denomina como “reproduction of the self from reflections of the other”, o ser humano cria a ameaça constante de ser invadido por aquilo que é diferente de si e mina definitivamente a possibilidade da “pureza” almejada. Se somarmos a isso o evolucionismo de Darwin e a constatação de que a divisão entre humanos e animais já há muito não é possível, conclui-se que circulamos permanentemente por um território híbrido que assimila o mundo cultural às ciências naturais, e vice-versa. As biotecnologias são um exemplo perfeito do encontro desses dois campos, pois controlam (e revelam) a animalidade interna ao homem através da manipulação daquilo que a rigor estaria na base de sua própria natureza: a procriação, o envelhecimento ou adoecimento das células de um organismo e, no limite, adentram pelo território até então materialmente interdito da morte. Como afirma Eugene Thacker, a biotecnologia sempre foi sobre os usos da vida.


3.
A assimilação de agentes não-humanos - nomeadamente, a máquina - à experiência humana não elimina aquilo que entendemos como “vida”, mas surge como sistema explicativo dos próprios organismo vivos. Hoje, na chamada era pós-industrial, na qual corpos e subjetividades são ressignificados pela tecnologia da informação — o movimento de uma sociedade orgânica, industrial, para um sistema informacional polimorfo — não faltam exemplos que delineiem o corpo orgânico em sua interface com os sistemas artificiais: seja na compreensão do genoma como um software ou no entendimento do cérebro como um computador (ou do computador como um cérebro). Novamente, surge a figura do cyborg, mistura de máquina e organismo, que articula as inúmeras posições do sujeito tecnologicamente mediado e permite o encontro entre corpos de naturezas aparentemente opostas. Trata-se, portanto, de deslocar a centralidade do humano em direção ao in / não / pós / humano, enfatizando as interconexões e contaminações híbridas como princípio radical de não pureza, e como proteção à clássica armadilha que separa natureza e cultura — isto é, uma ordem natural tida como distinta das mediações tecnológicas.




Braidotti, Rosi. “A Theoretical Framework for the Critical Posthumanities”. In: Theory, Culture & Society, 0(01) 1-31 (2018). DOI: 10.1177/0263276418771486

_____________ “Posthuman, All Too Human. Towards a New Process Ontology”. In: Theory, Culture & Society (2006/12/01). DOI: 10.1177/0263276406069232

Haraway, Donna J. “A Manifesto for Cyborgs: Science, Technology, and Socialist Feminism in the 1980s”. In: The Gendered Cyborg. A Reader, pp. 50-57. Organizado por Gill Kirkup, Linda Janes, Kath Woodward e Fiona Hovenden. Nova Iorque e Londres: Routledge, 2000.

Latour, Bruno. Nous n’ avons jamais été modernes. Essai d'anthropologie symétrique. Paris: La Découverte & Syros, 1997.

Thacker, Eugene. The Global Genome. Biotechnology, Politics, and Culture. Cambridge, Londres: The MIT Press, 2005.